Pensar no Agir I
Hannah Arendt dizia que o que distinguia os homem dos outros seres era a sua capacidade de ordenar o passado através do perdão e de ordenar o futuro através da promessa.
“Pensar no Agir” é uma promessa de reflexão sobre a acção do projecto À Bolina no território da Quinta da Serra que não tem a pretensão de ser generalizável . É apenas aquilo que é: uma reflexão à volta de uma prática para melhor a ordenar.
1.“Conhece-te a ti mesmo”
Quando chegámos à Quinta da Serra – um bairro de barracas no Prior Velho habitado sobretudo por Cabo-Verdianos e Guineenses – tratava-se, antes do mais, de fazer o reconhecimento do território, das condições concretas em que viviam pessoas concretas. Esse reconhecimento seria a base para estabelecer a oferta do projecto e essa oferta seria o instrumento da capacitação das pessoas e portanto da promoção da inclusão social.
Com o passar do tempo, fomos constatando que esse programa continha uma grave omissão: Nós. Ou seja, a necessidade da equipa efectuar, na acção, um processo de auto-conhecimento obstinadamente rigoroso. Ou seja, assumindo aquilo que cada um dos seus membros - e a equipa como um todo - efectivamente é e não aquilo que gostariamos que fosse. A acção tem-nos fornecido um surpreendente mapa de nós próprios.
Esse processo de auto-conhecimento, forjado na acção é, creio, o ponto de partida do primeiro tempo de capacitação da equipa. Nesse processo dá-se uma espécie de homeostase entre o interior (nós) e o exterior (o território). Nessa homeostase aprendemos que defeitos e virtudes essenciais são categorias plásticas e que o exercício de tomada de decisões é centrado na procura de contextos virtuosos. Dito de outra forma, um mesmo traço de carácter pode ser defeito ou virtude em função do contexto e o contexto é uma emanação da base moral e como tal, duma procura interior “cá fora”.
Este é o ponto de partida, de chegada e de novo de partida e de novo de chegada em muitos ciclos em que procuramos reconhecer uma tendência ascendente.
2.“Chamar o outro pelo seu nome”
No princípio, animados de boas intenções, a capacitação aparecia como algo que estávamos ali para oferecer através duma acção que procurava a eficácia. De alguma maneira tratava-se de um exercício empresarial eticamente conduzido. Identificar bem os nossos clientes e as suas necessidades, definir o mix de produtos capaz de as satisfazer, planear e controlar, dirigir e organizar os recursos de modo a procurar uma eficiência e eficácia que deixasse todos satisfeitos: o nosso público-alvo, o programa Escolhas, o consórcio do Projecto e a equipa.
A eficácia gera coisas, a fertilidade gera seres. Concentrados na eficácia da afectação de recursos vimo-nos conduzidos a relações instrumentais e até de paternalismo/dependência, possívelmente o erro mais grosseiro de intervenções deste tipo. Com objectivos quantitativos e qualitativos para cumprir, o caminho mais fácil é fazer o exercício já sabendo a resposta, ou seja, submetendo os meios aos objectivos e o processo ao resultado. Ora a nossa experiência ensina-nos justamente o contrário: o processo define o resultado. A fertilidade emerge de relações constitutivas. Relações entre pessoas que decidem trabalhar em conjunto. Dessas relações brota um poder especifíco, uma capacitação que é apropriada de diferentes maneiras e em livre arbítrio, por cada uma das “personas” intervenientes. Neste sentido a capacitação não se oferece, produz-se na relação e não é de só uma das partes mas de todos os sujeitos da relação.
A primeira reunião, em Abril, com a comissão de pais é um exemplo luminoso desta capacitação mútua , dos Pais e da Equipa, gerada por uma relação constitutiva voltada para a melhoria do desempenho escolar.
Um relação constitutiva, uma relação fértil, pressupõe que designemos o outro pelo nome. O abandono da abstração dos números e das generalidades qualitativas assumindo o primórdio do sujeito. A revelação acontece a seguir. O sujeito, o substantivo tem muitos adjectivos. Cada pessoa é uma multiplicidade de identidades. Uma relação fértil parte da identificação daquilo que realmente nós somos e daquilo que realmente o outro é. Não daquilo que gostariamos que o outro fosse. Mas assume a possibilidade de mudança, a possibilidade de transcendência a partir do poder gerado no próprio seio da relação. Tal é a natureza da nossa Utopia.
3.“Descer juntos”
No À Bolina apesar da juventude do projecto passamos por momentos de grande desolação quando no dia 6 de Março nos foram roubados todos os computadores do CID-NET. Mas em 11 de Março, na reunião da população, deu-se um salto qualitativo na nossa relação com comunidade. Deixámos de poder dar o que tinhamos prometido. O projecto ficou mais pobre. E a pergunta que fizemos foi se nos queriam, assim pobres? A resposta, emocionada, desassombrada e avassaladora foi: Sim! A nossa relação constitutiva com a comunidade começa aí. Deixámos de “estar para” para “estar com”.
Em muitas opções “estar com” exige uma progressiva identificação com a comunidade. A língua, a cultura, a maneira de viver, a pobreza. Não questionamos essas opções. Mas gostariamos de valorizar a via da diversidade. A das relações constitutivas entre pessoas diferentes. Perde-se, talvez, em eficácia , ganha-se em fertilidade. As pessoas do projecto introduzem diversidade no eco-sistema económico e sócio-cultural do bairro. A diversidade assente em relações não-instrumentais e constitutivas gera fertilidade e capacitação. A mudança de estado dá-se quando os meninos e meninas do bairro deixam de ver as “brancas” para ver a Catarrina ou a Anja e a seguir lhes escrevem cartas de amor e lhes trazem flores.
Queremos estar conscientes que vamos ter muitos mais momentos de desolação na nossa acção. Se soubermos descer juntos, reforçando relações, sem medo de bater no fundo vai ser fácil subir para a luz.
23 de Abril de 2007
Monday, May 14, 2007
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